No último texto falamos sobre o processo de morte e renascimento do ego, e do simbolismo deste fenômeno atrelado a passagem da Páscoa. Agora vamos falar um pouco sobre o que acontece imediatamente após os períodos de crise que representam o processo de renascimento. Chamamos este período de despertar do self, alguns autores usam o conceito de soul making, cuja a tradução seria algo próximo à tomada da alma.
Estes primeiros passos em direção à tomada da alma são bastante significativos, pois são eles que justamente irão manifestar os primeiros traços de transformação da personalidade. Desta forma, é natural que ocorram alguns estranhamentos. A princípio, pode surgir uma sensação de inadequação a esta nova consciência. Conforme se passa a atuar com base em novos princípios e valores, surgem algumas reações de pessoas que certamente também irão estranhar estes novos padrões.
Isto tem a ver com o fato de que a nossa identidade está fortemente relacionada às expectativas sociais no sentido da busca pela aceitação. O que se explica pelo próprio processo de formação da personalidade com base em uma leitura, por parte da criança, daquilo que seus pais esperam dela. Assim como, na busca por adequar sua personalidade a estas expectativas, no sentido de se sentir amada e reconhecida dentro do papel social que lhe foi atribuído.
Desta forma, ao longo da vida se estabelece uma verdadeira negociação em relação a estes traços de personalidade, que vão se sobrepondo conforme novas expectativas vão surgindo a partir da expansão da vida social para além do âmbito familiar. Sabemos bem o papel dos grupos durante a adolescência e de como eles ajudam a moldar a identidade, sempre no sentido da aceitação social. Já na fase adulta, surgem novas expectativas em relação ao papel profissional e uma nova identidade se estrutura com base nessas novas necessidades.
O processo de morte e renascimento do ego representa a quebra com alguns padrões estruturais dos traços de personalidade, no sentido de permitir uma reconfiguração destes traços dentro de uma nova dinâmica psicológica e social. Isto não significa que iremos deixar de ser quem somos ou que adotaremos uma nova personalidade diferente da antiga. Mas, reflete uma resignificação em relação à visão que se tem de si, do mundo, e de si no mundo.
Neste processo tanto a visão de si mesmo quanto a visão do mundo se tornam diferenciadas, e a partir disso surge uma nova relação com a vida, agregando-se novos valores e atitudes relacionados a novos padrões de consciência. Porém, existe uma idéia original que está relacionada à nossa essência, aquilo que verdadeiramente somos independentemente das expectativas sociais, aquilo que se pode chamar de alma, ou self.
Este núcleo que iremos chamar aqui de self, ou si mesmo, diz muito respeito à expectativa que nós temos em relação às nossas realizações pessoais. O self está relacionado a um propósito de vida ligado com os sonhos e projetos pessoais mais íntimos, aqueles que muitas vezes deixamos de lado para atender projetos relacionados às expectativas dos pais, ou muitas vezes de projetos que trarão muito prestígio social e retorno financeiro, porém pouca realização pessoal.
Não desprezamos de maneira nenhuma a necessidade de realização financeira e social, mas todos possuem algumas aspirações da alma, a realização de aspirações deste nível é chamada de soul making, ou tomada da alma. O interessante em relação a estes desejos é que eles dizem muito respeito àquilo que verdadeiramente somos, permitindo que diferenciemos o self dos traços de personalidade formados unicamente com base em expectativas externas, ou seja do ego. A este processo o psicólogo Carl G. Jung chamou de individuação.
A individuação também diz muito a respeito da imagem que criamos de nós mesmos a partir do olhar do outro. Porém, não se trata de uma leitura pura desta imagem, neste caso seria como se estivéssemos aprisionados no olhar do outro, em algumas situações realmente ficamos com a nossa auto imagem condicionada à aceitação externa. O senso comum atribui a estas pessoas a imagem de alguém com a personalidade fraca, ou alguém que se torna vulnerável emocionalmente no sentido de ser sempre persuadido ou influenciado.
Um processo de individuação saudável permite que nos reconheçamos no olhar do outro, sabendo diferenciar seus traços de expectativas e projeções, em relação à visão que a outra pessoa faz de nós mesmos. Assim, conseguimos filtrar nesta imagem aquelas informações que são verdadeiramente úteis ao nosso autoconhecimento e ao desenvolvimento pessoal, assim como podemos perceber os aspectos em que podemos melhorar, podemos ajudar o outro a melhorar também dentro desta relação.
Portanto, existe um ponto de equilíbrio entre o atendimento das expectativas sociais e a realização pessoal no sentido das aspirações da alma. Seria o processo de trazer o soul making, ou a tomada da alma, para a vida prática, revestindo o cotidiano de sentido. Aos poucos pode-se atingir este ponto de mutação, em que verdadeiramente se integra um significado maior a vida, e todas as ações no mundo são atribuídas de um sentido superior.
Carl G. Jung escreveu: "Minha vida é uma história da auto-realização do inconsciente ... eu posso entender-me apenas à luz de acontecimentos internos. São estes que compõem a singularidade da minha vida.” James Hillman vê a tomada de alma como o que acontece quando se evoca as emoções e as experiências de crise e oportunidade, de vida e morte, que dão a vida um significado mais profundo. Somente este mundo, com todos os seus opostos e dualidades, como disse Keats, fornece o material necessário da tomada de alma.
Então, ouça atentamente o que a sua alma tem a lhe dizer. Esteja aberto a todos os momentos, para todas as dualidades que surgem em seu caminho. Conhecer essas polaridades pode ajudar muito no processo de tomada de alma. À medida que se tornam mais claros e familiarizados o sentido mais profundo e duradouro de quem realmente somos, temos condições de aplicar estes preceitos no mundo.
A verdadeira realização ou tomada da alma, consiste em ver sua essência refletida através de suas ações. Isto dá sentido a sua existência e engrandece o caráter, fortalecendo muito a auto-estima. O processo de despertar do self representa a integração da consciência após o período de morte e renascimento, esta integração é fundamental para que se possa tirar o máximo benefício psicológico deste processo.